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Prelecção do sr. dr. Arthur Pinto da Rocha,
socio effectivo do Instituto

Sem dúvida, a mais grave responsabilidade, entre quantas hei assumido, na minha vida pública, é esta que sobre os meus hombros se dignou lançar o illustre sr. presidente do INSTITUTO, conferindo-me a incumbencia de dissertar a respeito do Ministerio de 16 de Janeiro de 1822.

Não me atemoriza a indagação historica indispensavel ao exame dos problemas politicos de ha um seculo; não me assusta a delicadeza do actual momento da existencia nacional a influir necessariamente na apreciação das horas difficeis de ha cem annos; causa-me, sim, um receio immenso, um tremor irreprimivel, a difficuldade sem egual de estudar, á distancia de uma centuria, a psychologia dos grandes homens de então e, sobretudo, o ter um pygmeu de 1922 de enfrentar os gigantes daquella geração, os Polyphemos daquelles dias immortaes, com especialidade os Andradas, netos de Bandeirantes e Briareus da nossa Independencia.

Deante dessas memorias o meu espirito de Brasileiro não se apavora como Henrique III, ao encarar o cadaver do duque de Guize; ao contrário, a minh'alma agradecida de homem livre curva-se genuflexa, saudosa dêsses dias distantes que nunca viu, como Francisco de Borja quando se extendeu aberto, á sua frente, o ataúde da imperatriz Isabel, de Portugal.

O grande fidalgo de Hispanha, que fruia o privilegio de não se descobrir deante da formosissima imperatriz viva, ao defrontar a immobilidade cadaverica da que fôra a mais poderosa mulher do seu tempo, levou a mão ao gorro, descobriu-se, prosternou-se, e beijou, num requinte de fidalga e respeitosa piedade, a mão gelada e livida, roxeada e inerte, que tantas graças distribuira e tanta grandeza erguera.

A distancia de 36.500 dias, decorridos nas luctas gloriosas que 876.000 horas de evolução politica e social têm imposto á nossa soberania, desde o seu longinquo alvorecer até o momento radioso dêste duplo jubileu sublime, é como as lentes poderosas dos telescopios modernos, approxima dos nossos olhos os vultos dèsses homens extraordinarios e augmenta-lhes prodigiosamente a estatura moral, á medida que elles de nós se afastam no tempo.

O Ministerio de 16 de Janeiro de 1822 tem hoje, para nós, o aspecto das grandes altitudes do globo, envoltas na bruma azul da distancia: prestigia-o alguma cousa de mysterioso, de lendario, de mythico; os seus membros parece que se confundem na mesma massa densa de uma serranía enorme a subir para o céo, e de cuja denticulação dous pincaros se destacam, se distinguem, se projectam mais arrojadamente na cúpula do infinito.

Dá-se com os grandes homens dessa epocha um phenomeno interessante e original de perspectiva.

Na Historia e na Geometria, a perspectiva apresenta aspectos muito differentes, até mesmo inversos.

Quem, no Jardim Botanico, lançar os olhos para a avenida das palmeiras, verá que, á medida que a nossa vista se extende em busca do extremo dessa rua de maravilhosa belleza, as palmeiras parecem diminuir de estatura: as primeiras têm aos nossos olhos a dimensão descommunal de gigantes formidaveis que vão diminuindo, lentamente, até que as últimas não passam acima de arbustos.

Succede o contrário na Historia; á medida que os seculos nos separam dos homens de antanho, a estatura dos heróes vai crescendo, vai subindo, vai remóntando e, por fim, attingem elles as altitudes dos Chimborazos, dos Nevada de Sorata, dos Illimani.

Tenho dos Brasileiros de ha um seculo essa impressão extranha, mas verdadeira; bizarra, mas heroica; errada, em Geometria, mas mathematicamente exacta em Psychologia historica.

< Ao contemplar (diz Latino Coelho), quanto nos fins do seculo XVIII, se desentranha do Brasil a natureza em dar á luz tantos e tão singulares entendimentos, bem podera dizerse que a terra americana de longe se dispunha e apparelhava com provido cuidado, para abrigar no seu girão immenso uma nação poderosa e independente. As epochas memoraveis vêm sempre, e em toda a parte, precedidas e quasi annunciadas pêla turba das valentes e grandes vocações.>

E o Brasil de ha um seculo teve incontestavelmente a sua grande geração de vocações, e á frente della, esse formidavel triumvirato de ermãos, e á testa dêste, o primus inter pares, mixto incomparavel de sabio e de apostolo, de homem e semi-deus, de criador e criatura, que foi José Bonifacio: "na Europa, eminente professor da Universidade de Coimbra, secretario illustre da Academia Real de Sciencias de Lisboa, eximio naturalista, que a fama ennobreceu como um dos mais insignes do seu tempo; na America, o apaixonado e vehemente agitador pêla emancipação da sua patria contra extranha sujeição, o ministro energico e denodado, o glorioso fundador da nacionalidade brasileira, o estrenuo luctador na arena tormentosa dos que aprenderam, oscillando entre a dictadura e a anarchia, o custoso alphabeto da liberdade. Na Europa, festejado como sabio e acclamado como uma gloria nacional. Na America, saudado como benemerito republico, e logo proscripto duramente como rebelde cidadão".

Foi esse vulto, inconfundivel na historia do Continente, o chefe supremo do primeiro Ministerio formado pêlo principe regente d. Pedro, no exercicio da auctoridade superior de logartenente de seu pae, el-rei d. João VI.

No dia em que o principe regente d. Pedro, respondendo a José Clemente Pereira, juiz de fóra e presidente do Senado da Camara, declarou categoricamente que ficaria no Brasil, para bem

de todos e felicidade geral da Nação, contrariou a opinião, firmemente exposta, do Ministerio que até ahi o accompanhara no exercicio da alta auctoridade do seu cargo.

Quando chegaram ás mãos de s. a. real os decretos de 29 de Septembro de 1821, entre os quaes aquelle em que lhe ordenavam as Côrtes de Lisboa o regresso a Portugal, convocou os seus ministros e consultou-os sobre a attitude que devia assumir: dar execução aos decretos e ausentar-se do Brasil, ou desobedecer ás imposições do governo de el-rei, seu pae, e permanecer no Rio de Janeiro?

S. a. era atilado, si bem que muito e muito inferior, em talento e em cultura, ao ministro do Reino e dos Extrangeiros, que o auxiliava com a lealdade do seu conselho, e muitissimo distante do grande sabio que seria dias depois, o sacerdos magnus da nova nacionalidade; mas nessa discussão memoravel, o principe teve o condão de se deixar inspirar pêla vivacidade do seu espirito e pêla reacção do seu orgulho ferido com a leitura dos decretos alludidos; por consequencia, as suas ponderações foram calmas, nobres e sensatas.

Em sua opinião, a monarchia portugueza estaria ameaçada de um gravissimo perigo, si elle désse execução aos decretos de Lisboa; a alma brasileira começava a despertar da sua catalepsia colonial de 320 annos e entrava a sonhar destinos de maior altitude e mais largos horizontes. O espirito do bandeirante, avivando as qualidades innatas da raça aborigene, sentia accender-se-lhe a chamma da desconfiança, bafejada pêla aspiração da liberdade politica, e seria um êrro de graves consequencias aggravar esse estado de alma. Ao contrário, seria um remedio de seguros effeitos acalmar a excitação da alma nacional, com um movimento leal e nobre de solidariedade moral.

A discussão foi prolongada; todos os ministros entenderam que o principe regente devia curvar a cerviz aos decretos das Côrtes, abandonar o Frasil á recolcnização projectada e os Brasileiros á servidão da gleba.

Uma grande intelligencia, um nobre coração, uma alma forte, um varão de Plutarcho se destacou e dissentiu do pensamento dos seus collegas: Francisco José Vieira, ministro do Reiro e dos Extrangeiros; como ministro, votou pêla retirada do

principe, pêla obediencia ás imposições das Côrtes; mas, tão depressa terminou a conferencia, o coração do amigo, o espirito que via longe, acercou-se do regente, aconselhou-o a desobedecer aos decretos e a permanecer no Brasil.

Affirma a Historia que d. Pedro lhe perguntou visivelmente emocionado: "E Francisco José Vieira ficará commigo, si porventura eu ficar ?" E o estadista respondeu sem detença - Não, senhor. A posição de ministro, em que me encontro, me priva dessa honra e dessa conveniencia".

Accrescenta um chronista da epocha esta nota elucidativa, que vale ouro: "o honrado Francisco José Vieira falleceu em Lisboa

pobrissimo".

E no entanto, José Bonifacio, que foi o seu successor no Ministerio, teve ensejo de lhe repetir insistentemente o convite para ficar no Brasil e continuar no Ministerio, prestando ao paiz e ao principe os serviços de que ambos necessitavam do seu saber, da sua experiencia e da sua lealdade. Mas o varão illustre entendeu sempre que a sua honra de homem e a sua qualidade de Portuguez, ao serviço do rei e das Côrtes, não lhe permittiam outra resolução que não fosse a de regressar a Portugal.

*

O "Fico" em minha obscura opinião, não tem, na historia da Independencia brasileira, a altissima significação que lhe ha sido attribuida, embora tenha na Historia do Brasil a importancia de uma data notavel, profundamente nacional.

Foi um incidente interessante sem dúvida, que as circunstancias tornaram célebre, mas que não é, em si mesmo, um factor directo da Independencia brasileira.

Com o "Fico" ou sem elle, com o principe regente ou contra elle, a Independencia se faria, a Independencia se fez.

Quando José Clemente, presidindo ao Senado da Camara, foi com este ao Paço Real, á presença do logar-tenente de el-rei d. João VI, apresentar o manifesto do povo do Rio de Janeiro, que lhe pedia a permanencia no Brasil, nem o juiz de fóra, que nesse momento desempenhava uma grande missão, nem 0 principé que o ouvia, desejavam a separação, muito menos a independencia do Brasil.

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