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immediatamente sou chamado para conter essa desordem que ia apparecer; então, era eu um dos mais honrados e benemeritos do governo, porque elles julgavam depender de mim a sua conservação no governo, para o que tanto haviam trabalhado. »

Em primeiro logar os gryphos são meus e marcam importantes affirmações: a noticia que appareceu era pequena e a desordem ia-se dar, mas não se deu. O batalhão de caçadores tinha como seu commandante o coronel Lazaro Gonçalves, que era responsavel pela sua disciplina e era membro do governo. Não nos diz Francisco Ignacio quando teve logar essa tentativa de levante, nem onde estava o coronel Lazaro, que não providenciava sobre a premeditada rebellião, como era do seu dever. Se Lazaro estava ausente da capital e o commando acephalo, qualquer membro militar do governo estava no caso de ir ao quartel applicar as medidas repressivas. Foi Francisco Ignacio, como poderiam ter ido Müller e Gama Lobo, militares e membros do governo, e o serviço prestado foi ao governo e nào ás pessoas dos Andradas.

Se Lazaro Gonçalves estava na cidade, a intervenção de Francisco Ignacio era superflua, porque aquelle tinha capacidade para arcar com as difficuldades do momento e para muito mais, como prova o facto de ter elle sido escolhido para ir, com Müller, suffocar a rebellião de Santos e para ir, com Gama Lobo, defender o Rio de Janeiro, ameaçado pelas forças portuguezas do general Avilez.

Demais o batalhão de caçadores, aqui mencionado, que era o 2.o, estando o 1.° aquartelado em Santos, tinha o habito da revolta e já no dia 3 de Junho de 1821 se tinha rebellado por questões de pagamento de soldo.

Era, então, João Carlos governador unico de S. Paulo e contra elle foi que se rebellou o batalhão, por questão de dinheiro e não por desconfiança politica. Se a revolta a que o coronel Francisco Ignacio se refere nào é esta, mas outra de que não nos quiz dar a data e os pormenores, não foi feita contra os Andradas determinadamente, mas contra todo o governo e teve por motivo a falta de pagamento de soldos, que já tinha dado origem aos motins de 3 de Junho, em S. Paulo, e de 29 de Junho, em Santos. Os Andradas, pessoalmente não ficaram a dever favor algum por isso ao coronel Francisco Ignacio, que, como militar e membro do governo, era tão responsavel como os seus collegas pela manutenção da ordem e da segurança publica.

Em segundo logar, José Bonifacio e Martim Francisco não podiam «julgar depender do coronel Francisco Ignacio a sua conservação no poder, para o que tanto haviam trabalhado», nào

sómente porque este coronel não era assim tão senhor da situação que fosse membro do governo só quem elle quizesse e havia outros militares de confiança, como Lazaro Gonçalves e Gama Lobo, que valiam tanto como elle, mas porque tambem os soldados de então não estavam contaminados pela politica ao ponto de distinguir no governo entre João Carlos e os Andradas.

O 2. batalhão de caçadores se rebellára em S. Paulo, a 3 de Junho de 1821, contra João Carlos por motivo de soldos atrazados, e o 1.° batalhão dos mesmos caçadores se revoltára em Santos, a 29 do mesmo mez, contra o Governo Provisorio pelo mesmo motivo e nenhum delles jamais se rebellou por causas politicas, que eram desconhecidas para os soldados boçaes do tempo. Os soldados eram brasileiros, emquanto os commandandantes, geralmente severos e asperos, eram quasi sempre portuguezes; daqui se segue que, se havia odios nos corações dos soldados, eram odios de nacionalidade e não odios politicos, e qualquer explosão da parte delles seria mais contra João Carlos e seus amigos portuguezes, do que contra os Andradas e os brasileiros do governo.

A prova da verdade desta hypothese está na propria acelamação do Governo Provisorio, quando alguns cidadadãos presentes disseram a José Bonifacio que não queriam no novo governo aquelles que até agora têm sido os nossos oppressores». Ora, José Bonifacio e Martim Francisco nunca tinham governado e tyrannizado os povos, nem eram commandantes de força armada para applicar aos pobres soldados as severas penas do regulamento militar do conde de Lippe. Aquelle protesto dos cidadãos, portanto, so podia se referir a João Carlos e aos commandantes portuguezes e denota que, se odios havia, eram contra os retrogrados e não contra os Andradas.

Ao coronel Francisco Ignacio, além de clareza na exposição dos factos, falta logica para tirar delles os justos corollarios.

Insiste elle ainda em affirmar que os Andradas trabalharam pela « sua conservação no governo », quando o governo foi feito por José Bonifacio, chamado á Camara Municipal especialmente para isso, e foi approvado pelo Principe Regente, por decreto de 30 de Julho de 1821, e não estava no poder de Francisco Ignacio conserval-o ou derribal-o, a não ser por meio de bernardas semelhantes aquella que deu com Martim e Jordão fóra do governo, mas que tambem trouxe a demissão de todos membros do governo e as deportações de alguns delles para

varias partes.

OS

Ora, é evidente que quem teve força para fazer o Governo Provisorio e depois teve ainda força para demittil-o e dispersar

os seus membros, tinha forças para manter intacto esse governo contra toda a má vontade do coronel Francisco Ignacio, que parece ter tido uma idéa muito exaggerada do proprio prestigio militar e politico.

II

Proseguindo na analyse da carta do coronel Francisco Ignacio, transcreverei o seguinte trecho, que é interessante, sendo do original os gryphos:

<< Fiz quanto esteve da minha parte, empenhei os meus amigos a favor desses ingratos e consegui, do que bem me arrependo, que tudo se desvanecesse: estes dous homens esquecidos de que me devem a sua presente elevação, pois que os conservei no governo contra a vontade dos habitantes desta cidade, acabam de pagar-me este serviço com a portaria de 21 de Maio, que remetto por cópia, na qual se me ordena que me recolha a essa corte, sendo talvez o meu crime a condescendencia que tive com elles, ou o não terem podido obter a nomeação de Joaquim Mariano Galvão para governador das armas, e pagar deste modo o serviço que acabava de prestar a Martim, fiandoThe vinte escravos a 1203 cada um e por seis annos.»

Da redacção obscura do final deste trecho, se conclue que quem fiou os escravos a Martim foi Joaquim Mariano Galvão e que Martim quiz pagar-lhe esse serviço, nomeando-o governador das armas da provincia, mas que, não tendo podido fazer esta nomeação por opposição de Francisco Ignacio, dirigiu contra este os seus rancores e odios. Tinha eu, portanto, razão para protestar contra esta affirmativa, porque Martim e Galvão estavam muito superiores a semelhante insinuação. Agora, se a redacção está errada e quem fiou os escravos a Martim foi Francisco Ignacio, como diz o cidadão E. R., acceito a rectificação e passo a outros pontos do trecho citado.

A carta citada é de 1.° de Julho de 1822, quando José Bonifacio e Martim já não eram membros do Governo Provisorio, nem mais estavam em S. Paulo. Como é, então, que Francisco Ignacio vem dizer «estes dous homens esquecidos de que me devem a sua presente elevação... » ?

Quer se refira ao cargo de ministro do Principe Regente, que José Bonifacio então occupava, quer ao cargo anterior de membros do Governo Provisorio, occupados por José Bonifacio e Martim Francisco, esta affirmação do coronel Francisco Ignacio é absolutamente inacceitavel, porque os Andradas não lhe deveram um só sequer dos cargos que exerceram, e se allude á < pequena noticia do motim que ia se dar» do batalhão de caça

dores, já ficou explicado que o coronel Lazaro Gonçalves, seu commandante, providenciaria e na sua falta Gama Lobo e Müller estavam á mão, não sendo o serviço feito aos Andradas, mas a todo o governo.

Para bem se comprehender como o espirito do coronel Francisco Ignacio estava absorvido pelo rancor e pelo odio contra os Andradas, quando escreveu a carta em questão, basta ler o seguinte trecho da mesma carta:

«Deixando em silencio o modo por que José Bonifacio e Martim Francisco, esse dous ambiciosos do governo, se introduziram no Governo Provisorio desta provincia, que certamente não lhes é muito airoso...etc.»

O povo e a força armada se reunem no dia 23 de Junho de 1821, na Camara Municipal, e enchem o pateo vizinho, depõem o capitão general João Carlos e tractam de acclamar um novo governo; enviam uma commissão de tres militares á casa de José Bonifacio, para pedir-lhe, em nome do povo e da tropa, que venha presidir á eleição dos membros do governo; apenas. a commissão apparece na Camara, trazendo comsigo José Bonifacio, «aquelle illustre sabio da nação», os ares retumbaram com o grito, muitas vezes repetito: VIVA O SENHOR CONSELHEIRO !Uma vez dentro do paço municipal, José Bonifacio, dirigindo-se ao povo disse: Senhores, sou muito sensivel á honra que me fazeis, elegendo-me para presidente da eleição do Governo Provisorio que quereis installar. Pela felicidade da minha patria eu farei os mais custosos sacrificios, até derramar a ultima gotta do meu

sangue.

A resposta a esta declaração foi um geral VIVA O SR. CONSELHEIRO ! Animado por esta approvação José Bonifacio continuou: «Esta eleição, senhores, só pode ser feita por acclamação unanime; descei á praça e eu, da janella, vos proporei aquellas pessoas que, por seus talentos e opinião publica, já por vós manifestada, me parecem dignas de ser eleitas». Foi então que alguns cidadãos declataram que não deviam entrar para o novo governo «aquelles que até agora têm sido nossos oppressores» ; porêm antes que pudessem citar nomes, como pretendiam, José Bonifacio os atalhou, dizendo:

<< Senhores, este deve ser o dia da reconciliação geral << entre todos. Desappareçam odios, inimizades e paixões. A Pa«tria seja a nossa unica mira. Completemos a obra da nossa re<< generação politica com socego e tranquillidade, imitando a glo<< riosa conducta dos nossos irmãos de Portugal e do Brasil.

« Persuadido de que haveis posto em mim a vossa confiança, « acceitei o convite que me fizestes e aqui estou prompto a tra

STANFORD LIBRAR

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« balhar pela causa publica. Se, de facto, confiaes em mim e « estaes resolvidos a portar-vos como homens de bem, então eu << me encarrego de procurar a vossa felicidade, expondo a pro« pria vida; mas, si outros são os vossos sentimentos, si o vosso fito não se dirige sómente a bem da ordem, si pretendeis man<«< char a gloria que vos pode resultar deste dia è projectaes de<< sordens, então eu me retiro, ficae e fazei o que quizerdes.»

- Não, senhor, responderam, a uma voz, nós temos toda << a confiança em v. exc., toda, toda.» »- - Pois bem, replicou José << Bonifacio, descei á praça e approvae daquelles que eu nomear « os que mais vos merecerem.» Sahindo a uma janella, dirigiu ao povo, que estava no pateo, uma exhortação para que se portasse de modo ordeiro e honroso e apresentou em primeiro logar o nome de João Carlos de Oeynhausen para presidente do novo governo. Sendo approvada com «vivas» esta proposta, gritou o povo: «Para vice-presidente queremos a v. exc., senhor conselheiro», e assim ficou resolvido. Seguiram-se então as eleições de Martim Francisco, para secretario do Interior e Fazenda, do coronel Lazaro Gonçalves, para secretario da Guerra; de Oliveira Pinto, para secretario da Marinha e outros.

E a tudo isto é que o coronel Francisco Iguacio chama desairoso! E ao homem illustre, que dirigiu os acontecimentos acima descriptos, é que o mesmo coronel chama «ambicioso de governo» !!

Os trechos foram fielmente transcriptos, tanto da carta do dito coronel como da narrativa que Azevedo Marques nos diz ser da penna de uma testemunha occular fidedigna, para que o leitor possa bem ajuizar se houve em tudo isso alguma cousa desairosa para José Bonifacio e Martim Francisco.

Se esta eleição do novo governo, por ser revolucionaria e não estar de accordo com a lei das Cortes, não foi regular, o epitheto de intrusos caberia mais a Francisco Ignacio e outros, que tomaram parte na revolução, do que a José Bonifacio, que só foi chamado para sanccional-a, e do que a Martim Francisco, que nella não tomou parte alguma. Demais, todo o feito foi legalizado por decreto do Principe Regente, de 30 de Julho desse mesmo anno, e só por um deploravel estrabismo politico é que Feijó e outros pretenderam atirar sobre os Andradas a pecha de intrusos, que abrangeria todos os membros do governo, inclusive Francisco Ignacio, se fosse verdadeira e applicavel

ao caso vertente.

Entende o cidadão E. R. que tres nomes, os dos coroneis Lazaro Gonçalves, Gama Lobo e Francisco Ignacio, se impunham para membros do Governo Provisorio, acclamado a 23 de

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