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As cartas Andradinas

DE 1824 A 1829. BILLIOTHECA NACIONAL, VOL. XIV

Na intenção de procurar apoio solido a theoria que temos de formular sobre as tendencias da nossa sociedade em o nosso livro em preparo —A psychologia do povo brasileiro, fomos lêr com attenção, entre muitos outros trabalhos e documentos, as Memorias de Drumond e as Cartas Andradinas, infelizmente tão pouco familiares, ao que nos parece, aos nossos escriptores e, muito menos, aos nossos homens politicos.

Umas e outras de

vem ser cuidadosamente lidas e estudadas não sómente pelos eruditos, como por todos os que se occupam sisudamente da historia do nosso paiz e dos que estão encarregados de o dirigir praticamente pelos processos politicos. Não se comprehende que se possa dirigir um paiz, com esperança de successo e de uma maneira racional, sem o conhecimento profundo dos seus precedentes historicos, como são indicados en

fontes.

suas boas

Deixando aqui as impressões que recebemos da leitura attenta desses documentos, temos tambem em vista prevenir áquelles que lerem o nosso livro da importancia que attribuimos a tão interessantes escriptos, dos quaes muito nos serviremos para a elaboração da synthese historica do nosso glorioso periodo social de 1822 a 1840.

As Memorias de Drumond foram dictadas por seu illustre auctor, já ferido de cegueira, a fim de servirem de subsidio á historia da época mais memoravel do nosso paiz. Antonio de Menezes Vasconcellos Drumond foi um dos patriotas brasileiros que mais souberam honrar o nosso paiz não só pela parte notavel que, desde muito moço, tomou nas nobres luctas da propaganda pela independencia, como pelo nome e realee que The grangeou entre as grandes nações da Europa, quer no tempo do exilio, quer depois, graças a seus magnificos escriptos sobre o Brasil, aos quaes as mais sabias associações da França, da

cas.

Allemanha e de outros paizes cultos tributam consideravel apreço, distinguindo o seu auctor com as maiores honras scientifiEleito deputado á Assembléa Constituinte e filiado ao partido dos Andradas, com os quaes fôra sempre perfeitamente solidario, fundou elle e redigiu, com o desembargador França Miranda, o famoso jornal O Tamoyo, para defender e sustentar a independencia brasileira e o governo constitucional que, como áquelles, lhe parecia correr serios perigos pelas machinações do partido absolutista.

O golpe vibrado pelo imperador contra os Andradas e seus mais intimos partidarios, o qual, dissolvendo a Constituinte a 12 de Novembro do 1823, os mandara prender e deportar, devia tambem terir, como ferira, o illustre patriota. Drumond foi, com effeito, indigitado e diligentemente perseguido a fim de ser preso e seguir caminho do exilio, em companhia de José Bonifacio, Martim Francisco, Antonio Carlos, Rocha e Montezuma.

Conseguindo, porém, escapar ás activissimas pesquizas dos que se lhe puzeram ao encalço, retirou-se para a Bahia, onde se demorou algum tempo até que, julgando-se em perigo pela exacerbação a que chegara a provincia, emigrou para a Europa e estabeleceu-se em Pariz, onde ficeu a salvo do furor dos seus perseguidores,

Em 1828 pôde regressar Drumond para o Brasil, onde, confraternisando sempre com os Andradas, que tambem voltaram, começou logo a exercer de novo larga influencia sobre os gocios politicos.

ne

Depois de algum tempo entrou para a diplomacia e nesta carreira conquistou para seu paiz e para si a mais brilhante

nomeada.

Finalmente, após uma longa vida, cntremeiada de tantos successos e peripecias, cançado, cégo, ajuntou, dictando, uma copia de notas á sua biographia escripta em 1836, umas rectificando factos, outras esclarecendo-os, outras narrando episodios ricamente illustrativos, e, todas ellas, dando uma côr tão viva e pittoresca aos acontecimentos da época em que florescera, que a physionomia do seu tempo e perfil dos homens politicos, seus contemporaneos, ficaram nitida e perfeitamente desenhados.

Amizade, tão pura, tão devotada que Drumond consagrava aos Andradas, principalmente a José Bonifacio que, em compensação, prestava-lhe uma confiança illimitada e uma affeição toda filial, se revela tambem ahi a cada passo em sua inteira grandeza.

A biographia de Drumond assim exuberantemente annotada foi publicada pela Bibliotheca Nacional em seu volume XIII.

Não conhecemos escripto algum nosso sobre esse notabilissimo trabalho. Entretanto, a auctoridade e o prestigio do seu auctor, um dos protogonistas da época que esse bello trabalho descreve e elucida, dão-lhe o cunho da maior authenticidade e veracidade. Vamos, porém, ás Cartas Andradinas. Estas Cartes, ao contrario das Memorias de Drumond, não foram escriptas para serem publicadas, á excepção de uma ou outra de Martim Francisco. Consistindo na correspondencia epistolar dos Andradas com seus dois bons amigos Drumond e Rocha durante os seis longos annos de seu exillio de 1824 a 1829, foram ellas escriptas para satisfazerem, mais que tudo, esta necessidade que todos nós sentimos de vasar nossas alegrias ou nossos pezares em corações bondosos que saibam comprehender-nos e sentir comnosco as provações por que passamos.

Destarte, não se encontram nellas nenhuns laivos de arte litteraria, nada que se pareça com os atavios da linguagem, com a elegancia da fórma; muito ao envés, fere-nos logo a attenção a impropriedade de termos, a incorrecção da phrase e, algumas vezes mesmo, a inconveniencia do modo de dizer, como, com razão, notou um distincto escriptor nosso, sr. José Verissimo. Taes cartas foram adquiridas do nosso operoso compatriota sr. dr. Mello Moraes Junior, pela Bibliotheca Nacional que, nuamente, sem nenhuma annotação, as publicou em seu volume XIV. Sobre ellas escreveu o auctor brasileiro já citado, o sr. José Verissimo, um excellente artigo sob o titulo José Bonifacio nas suas Cartas, e que se encontra em seus Estudos Brasileiros publicados em 1894.

E nada mais conhecemos a respeito.

O sr. José Verissimo estuda apenas, em seu bello trabalho, as cartas de José Bonifacio e em nenhum ponto se refere ás de Martim Francisco e ás de Antonio Carlos.

Todavia, se aquellas pintam, como bem diz o brilhante escriptor, a physionomia daquelle grande brasileiro, desse homem verdadeiramente raro, senão unico em a nossa historia, as destes completam tambem a biographia de dois varões tão illustres que, como alguem o disse, seria cada um delles o maior homem do seu paiz se elles não fossem irmãos de José Bonifacio. As Cartas Andradinas devem, pois, ser lidas conjunctamente; e, assim apreciadas, ellas nos mostram em nitido relevo essa triade admiravel, sem exemplo nos annaes dos outros povos.

Durante os compridos annos de residencia em Talence e Bordéus que abrange a sua correspondencia epistolar com os amigos e companheiros de infortunio Drumond e Rocha, viveram aquelles homens gloriosos sob a pressão penosa das tristes cala

midades que se desencadeavam sobre a sua patria e cujas causas elles attribuiam á nefasta influencia que os absolutistas, unidos aos demagogos, conseguiram ganhar sobre o animo do imperador, á nenhuma dedicação e civismo dos partidos que dominavam, á ignorancia e incapacidade dos ministros de Pedro I.

E, para conforto nos duros dias de desterro, para linitivo ás sinistras apprehensões pelos destinos do seu paiz, entregaram-se afanosamente os tres nobres exilados á leitura e ao estudo da litteratura e das sciencias em que eram profundamente versados.

E que vida intellectual, intensa e fecunda, foi então a sua! Antonio Carlos, que era jurista, lia todas as obras novas que se publicavam em Pariz sobre direito publico, direito constitucional, sobre educação e outros assumptos semelhantes, que o obtinha por intermedio de Drumond. Martim Francisco, de seu lado, ora expunha em longa carta a Drumond para ser publicada em Londres, a proposito do emprestimo que o governo de Pedro I pretendia effectuar naquella praça, os principaes fundamentos que, sobre a theoria dos emprestimos, elle havia sustentado como ministro da Fazenda e que ainda então sustentava em contrario aquella operação projectada; ora, explanava-se, em outra carta tambem destinada á publicação, sobre as condições illegaes e ruinosas do tractado que, por intervenção da Inglaterra, ia o governo do Brasil celebrar com o de Portugal para o reconhecimento da independencia do nosso paiz. E, respondendo a Drumond sobre a sua biographia, que este lhe enviara, dizia-lhe Martim Francisco que conhecia seis linguas e que, entre seus escriptos scientificos, podiam citar-se: as suas « Viagens mineralogicas» que fizeram conhecer todos os productos nacionaes da provincia de S. Paulo; uma Memoria sobre as minas de ferro de Sorocaba, de onde nasceu a creação da actual fabrica de ferro do Ypanema; outra sobre os meios de civilisar os indios dos campos de Guarapuava.

José Bonifacio, esse acolhia-se ao seio das musas e, apezar dos seus achaques, desenvolvia extraordinaria actividade intellectual, estudando tudo o que se publicava de novo sobre physica e chimica, historia natural, historia geral, chorographia e historia do Brasil; compondo grande numero de poesias, principalmente odes, saphicas, anacreonticas e pindaricas, sobresaindo entre estas as duas famosas, a ode aos Gregos e a ode aos Bahianos que, em carta, remetteu a Drumond.

Promovia José Bonifacio, sempre por intermedio deste seu illustre amigo, a impressão pelas revistas scientificas de Pariz da sua « Viagem mineralogica de São Paulo », de sua < Noticia

do interior da Africa », do seu « Curso do Niger » e dos seus opusculos sobre a civilisação dos indios e sobre os meios de se extinguir gradualmente a escravidão no Brasil. Este ultimo opusculo, publicado e prefaciado por Drumond em 1825, contém uma representação ou uma exposição de motivos sobre aquelles dois importantissimos assumptos e o celebre projecto sobre o commercio da escravatura e sua emancipação gradual, que nào póde ser apresentado á Assembléa Constituinte e Legislativa de 1823, em consequencia de sua dissolução. Prefaciando-o diz Drumond: « este opusculo é escripto com uma eloquencia varonil, concebido em um plano tal de conhecimentos e experiencia que elle leva comsigo o typo da sabedoria e a expressão do patriotismo». Escrevendo a Drumond, que The consultava sobre a sua biographia, dizia-lhe José Bonifacio que conhecia onze linguas e falava seis. Recommendava-lhe em outra carta que guardasse com cuidado certos papeis que elle pretendia aproveitar para as suas Memorias politicas. E assim, nessa lida continua e interessante, procuravam esses verdadeiros grandes homens suavisar os amargores do desterro. Mas, as Cartas Andradinas nol-os apresentam ainda sob outras perspectivas.

E' de notar-se a perfeita identidade de vistas, o pleno accordo de sentimentos politicos que caracterisam os tres irmãos e se traduzen em suas cartas pela mesma vehemencia de expressão, pelo mesmo tom energico e vibrante. A indignação de que se possuiam contra o imperador e os homens que o serviam chega a seu auge e se exprime em apostrophes terriveis, em lances violentos, em epithetos affrontosos.

Elles não os estigmatisam assim tão duramente só porque tinham sido OS auctores de sua desgraça, mas porque os consideravam algozes do seu paiz, os fautores das calamidades que o assoberbavam.

A conducta immoral do imperador, os erros e desatinos dos seus ministros, o cortejo de injustiças que praticavam, a derrama de condecorações e de titulos inconsideradamente distribuidos, a postergação dos homens bons e a elevação dos máus, os desastres lamentaveis da guerra que sustentavamos contra a Cisplatina e o Rio da Prata, tudo isso era o thema das graves accusações dos Andradas, em sua correspondencia com Drumond e Rocha, aos homens que governavam o paiz. Essa indignação e a maneira de exprimil-a não podiam elles contêr nem mesmo colorir, porque isso não se compadecia com a sua tempera varonil, francamente aberta para as fortes sensações. Causavam-lhes as coisas do paiz uma tão pungente afflicção, que ellas arrancavam a José Bonifacio, em sua carta de Janeiro de 1826, estas palavras de

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