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João Ramalho

PARECER

Precisar o conhecimento do passado; completar, por meio de novas sciencias auxiliares esse conhecimento; exhumar, sem preoccupações de idéas proprias, os mortos, para exhibil-os, taes quaes foram; visar, de preferencia a tudo, a verdade; é o lidimo fim da historia, é a cuspide a que deve alçar-se o espirito pesquizador, enthusiasta de extinctas eras.

Entretanto, nem sempre assim acontece.

Aqui é o chronista, que só diz o que ama ou o que detesta. Alli o que se não offusca, que não encobre a sua personalidade, para em plena luz deixar apenas o assumpto que tenteia comprehender e explicar.

Graças á critica, porém, as sciencias vão hoje soffrendo real modificação. A missão do historiador não se reduz a narração simples e arida de factos, que se dizem occorridos em tempos determinados. Procura conhecer as causas desses factos: guia-o então a philosophia da historia. Recorre a methodos diversos, a processos de investigação e de confronto, que substituam por noções mais rigorosamente exactas as versões convencion aes da historia; ahi, uma sciencia moderna, a diplomatica, serve-lhe na analyse das fontes diplomas, cartas, actas, autos, etc.

Sobremodo honrado com um posto numa commissão que deveria elucidar um facto já de ha muito referido pelo visconde de Porto Seguro que J. Ramalho era analphabeto - julgamos do nosso dever seguir os methodos modernamente empregados, adoptando como nossa a opinião de Luciano Cordeiro-«que a critica não se molda pelas prosapias de aristocracias pergaminhosas; que uma critica cheia de fiducias fidalgueiras não é verdadeira critica; contradiz a missão de que se diz encarregada; exautora o sacerdocio que proclama; é, sobre falsa, contra-producente, sobre inutil, ridicula »-Collocado sob ponto de vista diverso, tivemos necessidade de abandonar os nossos illustres companheiros de commissão, porque se nos afigurou que o bri

lhante parecer, lido em sessão de 20 de Maio, desdenhando empregar os actuaes methodos scientificos, não só nada adeantava sobre o assumpto, como ainda era inacceitavel em certos pontos.

Logo de começo a illustre maioria da commissão diz queJ. Ramalho não era um homem de sãos principios, que não os conhecia mesmo; diz que tem em seu apoio as chronicas e que o padre Simão de Vasconcellos attribue-lhe a pratica de captivar indios para vendel-os no littoral; cita depois Herrera, fala na opposição de Ramalho á cruzada dos jesuitas em favor do gentio e termina afiançando que ao levante dos indios contra Piratininga em 1562 J. Ramalho não foi extranho.

O chronista S. de Vasconcellos parece ter sido o auctor predilecto da illustrada maioria.

A primeira condição exigida num chronista ou historiador, para merecer todo o credito, é a imparcialidade. Possuia essa qualidade o padre Simão?

A diversidade de palavras que emprega para estygmatizar os vicios dos leigos e os dos ecclesiasticos é uma razão poderosa para pormos em duvida essa imparcialidade.

J. Ramalho era infame por crimes graves e excommungado infame nos vicios, amancebado publico por quasi 40 annos e de ordinario POR ESSA CAUSA EXCOMMUNGADO. Chron. da Companhia de Jesus. L. 1 ns. 77 e 126.

Os portuguezes licenciosos com a vida soldadesca viceja, vam em vicios publicos que serviam de escandalo a toda terran. 85.

Si o vicioso é um ecclesiastico, não ha um adjectivo para qualifical-o «uma mulher que gasta parte da vida escandalosamente com un ecclesiastico»-n. 12 (Este não é criminoso nem infame, n. 16).

Si é um discipulo:-delinque, exaggeram-lhe a culpan. 129. Os grandes crimes de Ramalho consistiam na mancebia inveterada, pois que nenhum outro encontramos nos chronistas, nem mesmo em S. de Vasconcellos.

A illustrada maioria deixou escripto que Ramalho era inimigo da Companhia de Jesus. Esta era poderosissima, tinha por principal bemfeitor el-rey D. João 3.° Vasc. p. 2 n. 26.

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Mem de Sá, governador do Brazil, ao chegar á Bahia a 1.a coisa que fez foi recolher-se a um dos cubiculos dos religiosos dr. Cia. - Vasconc., cit. p. 2 n. 49, e «senão foi da Cia. perecia-o pelo respeito que tinha aos Jesuitas, especialmente ao padre Manuel de Nobrega, a quem consultava em tudo, e sem cujo conselho nada obrava». Ibid.

Ora, si Ramalho era um grande criminoso, por outros crimes, si a Companhia tinha tal prestigio, como não fazia abrir devassa a respeito? Si Ramalho era um grande criminoso, Jorge Ferreira, cavalheiro de mór linhagem, não desposaria uma das suas filhas, sabido como é que na aristocratica capitania de S. Vicente, as familias principaes, fazendo timbre de sua origem, se extremaram sempre, evitando alliança com individuos cujos precedentes não conheciam. P. Seguro, Hist. Geral do Brazil cap. XIV p. 225.

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Si Ramalho era um grande criminoso, como tel-o-ia Martim Affonso nomeado guarda-mór do campo, cargo que só poderia recahir em pessoa de collocação.-Livro dos regimentos del Rey Dom Diniz para os officiaes de guerra e casa e na companhia do donatario vinham fidalgos de alta estirpe? Como foi-lhe depois dado o posto de alcaide-mór, para cuja investidura dever-se-ia attender ás Ord. do Reino - Carta de doação a M. Affonso e Foral da Capitania, clausula 13."?

Si Ramalho era um grande criminoso, era natural que procurasse recolher-se ao centro da capitania, que evitasse o contacto com os portuguezes, que dissuadisse o donatario de ahi estabelecer-se. Entretanto, deu-se o contrario. Foi Ramalho quem persuadiu a Martim Affonso que devia subir a serra e erigir nos campos uma povoação.

Egualmente sem base julgamos a existencia de trafico de escravos feito por J. Ramalho no littoral. Mello Moraes contesta-o com bôas razões. A citação de Herrera nào faz referencia a J. Ramalho e contém demais um anachronismo. Si o nome de S. Vicente foi dado por M. Affonso, por occasião da sua viagem em 1531, como poderia Diogo Garcia, em 1527, isto é, quaannos antes, contractar escravos indios nessa capitania?

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A propria cruzada em favor da liberdade e dos indios é contestada por muitos escriptores. Porto Seguro, cit. 1.° vol., pag. 215, cita trechos do padre Manoel da Nobrega e de J. de Anchieta, em que dizem que a experiencia mostra que deixar os indios em liberdade e vontade é nada querer fazer com elles, -porque mais por temor se hão de converter que por amor.

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Pouco crivel tambem nos parece a asserção de fazer Ramalho opposição aos jesuitas. Elle dispunha de influencia real sobre Tebyreça, ao ponto de dissuadil-o de oppôr-se ao desembarque dos portuguezes; dispunha de enorme influencia sobre os indios. U. Schmidel, na sua Historia verdadeira de uma viagem curiosa, diz que J. Ramalho era tão poderoso que poderia pôr em campo até 5.000 indios, ao passo que não se reuniriam 2.000 sob os estandartes reaes. Ora, si elle fazia opposição aos

jesuitas, si dispunha de tal prestigio, era natural que procurasse impedir a destruição de S. André e a mudança dos seus habitantes para Piratininga. No emtanto, mudou-se pacificamente para esta com a sua familia.

Nem verdadeira é a affirmação de não ser Ramalho extranho ao ataque dos indios a Piratininga em 1562.

O proprio S. de Vasconcellos, tão inimigo de Ramalho, não calar-se-ia sobre um tal facto. O principal dos indios que se assignalaram no combate, diz elle, foi um que depois do baptismo tomou o nome de Martim Affonso, p. 2. n. 81. Ora, esse tal M. Affonso er o proprio Tebyreçá, sogro de J. Ramalho.— n. 134.—«A este principal (M. A.) e a toda a sua geração muito deve a Companhia» cit. n. 139. Mas, recorramos a outras provas:-24 de Maio de 1562-«J. Ramalho é eleito pela camara e pelo povo de S. Paulo para capitão da gente que tem de ir á guerra contra os indios de Parahyba.» Azevedo Marques-Chronologia.

Archivo da camara de S. Paulo, livro de vereanças--1562. Temos, pois, alli, uma fonte diplomatica, apoiando uma formal contestação ao parecer. Estas mesmas provas oppomos á rivalidade, em 1562, entre S. Paulo e S. André, destruida em 1560. Outra fonte diplomatica, em contestação a essa hostilidade dos habitantes de S. André, é uma carta do padre Manoel da Nobrega, escripta em 1:56 a S. Ignacio de Loyola, em que encontramos o seguinte trecho: «a villa de S. André, que he de cristãos, e todos os cristãos desejam ir alli viver, se lhes dessem licença.»>

A razão de preferirem os indios ir viver em S. André, era, diz o brigadeiro Machado de Oliveira, a brandura com que os tratava Ramalho, que sairia logo de través a qualquer abuso que houvesse na concorrencia das duas raças.

Si havia divergencia entre os habitantes de S. André e os de Piratininga não era ella devida á influencia de Ramalho, e muito menos á falta de religião dos habitantes do extincto povoado.

Os padres da Companhia tiravam os indios do poder dos portuguezes e mestiços; estes, por sua vez, retiravam as esmolas de que viviam aquelles-S. de Vasconcellos n. 200; procuravam affastar os indios, que trabalhavam para aquelles-Vasc. cit. ns. 73, 75, 130, 146 e 161, attribuiam aos primeiros e aos discipulos crimes pessimos-cit. n. 126 e 161, sendo certo que uma vez um desses crimes foi confirmado id. 129.

O abandono de Piratininga, porém, provinha de outras causas : ás vezes a molestias-cit. n. 160; ás vezes á sua natural inconstancia-id. p. 2. n. 11, M. de Oliveira, pag. 37.

Outros, além desses, foram os motivos da extincção da villa de S. André. Na doação das cem leguas de terras concedidas a M. Affonso, d. João 3.° estabelecera que-por dentro de terra firme, pelo sertão, não poderiam ser feitas villas, a menos de seis leguas uma da outra, sem licença regia.

Ora, Piratininga, ficando a pouco mais de tres leguas, e não tendo sido fundada com essa licença, teria necessariamente que desapparecer, que ceder o passo a S. André, que fôra elevada a villa em 8 de Abril de 1553-Frei Gaspar-Memorias.

O primeiro golpe desfechado contra a primogenita de M. Affonso nos campos de Piratininga foi a resolução de Mem de Sá, a instancias dos padres dos quaes era hospede, mandando que os indios se ajuntassem em povoações grandes, em fórma de republica. Vasconc. n. 50.

Quanto ás condições de apparecimento de Ramalho, preferimos collocar-nos do lado daquelles que, como Southey, Balthazar Lisboa e muitos outros, attribuem esse facto a um naufragio, naufragio que Beauchamps diz ter acontecido durante a expedição de Coelho. O proprio Vasconcellos--Noticia das coisas do Brazil-L. 1. n. 19-refere que Gonçalo Coelho recolheu-se a Lisboa, de volta do Brazil, com dois navios menos.

Deixando de lado mais algumas considerações geraes sobre parecer, vamos entrar na questão de saber si effectivamente J. Ramalho era analphabeto. Permitta-nos a illustre maioria que logo de principio extranbemos que fosse acceitando, sem mais analyse, uma traducção interlinear das actas de S. André, feita por P. Taques ou por Frei Gaspar, segundo pensa P. Seguro, traducção essa errada em varios pontos, feita ninguem sabe em que epocha, nem por quem. Perguntamos: não conhecendo os nossos illustres consocios, que firmaram o parecer impugnado, a paleographia, para poderem lêr o original dos documentos, como podem garantir a veracidade da traducção?

Apenas uma obra sobre diplomatica o- Glossarium de Du Cange, reimpresso pela congregação de S. Maur,-é encontrada na principal bibliotheca desta capital, naca possuindo sobre paleographia, nem mesmo as «Dissertações chronologicas de Ribeiro», que bons serviços poderiam prestar, principalmente a 15.", relativa á paleographia portugueza.

Julgamos perigoso o acceitar uma traducção anonyma, feita de original desconhecido. Para que o Instituto possa avaliar a fidelidade da traducção, basta que refiramos que a assignatura do tabellião publico e escrivào da camara, Gaspar Nogueyra, foi traduzida por Paulo de Proença! E a illustre maioria, talvez fundada em Azevedo Marques, acceitou essa traducção.

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