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A Bernarda de Francisco Ignacio

(CHAGUINGAS)
I

Na Revista do Instituto Historico de S. Paulo, vol. V, dá o dr. Antonio de Toledo Piza uma segunda edição do que escrevera no vol. I dos Doc. Interes. á historia e costumes de S. Paulo; o reparo que já fizemos quanto a publicação de exposições apaixonadas de factos historicos, em livros que trazem o cunho de officiaes, cabe ainda aos artigos da Revista do Instituto, que, parece-nos, devia ser simples repositorio de documentos ou memorias documentadas de factos que interessam á nossa historia, e não de artigos mais proprios para gazetas ou pamphletos. Os dous artigos-Chaguinhas-e-Martim Francisco e a Bernarda-em fundo são variações do mesmo thema-a Bernarda de Francisco Ignacio, publicada nos Doc. Interes. cit., illustradas com algumas noticias biographicas dos homens que tomaram parte no governo provisorio de São Paulo, e sobretudo ostentando os esforços do seu auctor em cercar os Andradas da aureola mais brilhante.

Respeitamos a memoria dos Andradas, sem dar-lhes proeminencia, como a de todos aquelles que patrioticamente cooperaram para a nossa independencia. Mas o respeito, diremos mesmo, a veneração por todos esses creadores da nossa nacionalidade não vai ao ponto de procurarmos, em seu louvor, escurecer os factos historicos, ou livral-os das censuras, já feitas por seus contemporaneos, por actos que não podemos, em consciencia, ap

provar.

Tratando da «bernarda de Francisco Ignacio», esquecemos alguns documentos que explicavam o que fora esse acontecimento; referimo-nos ao supplicio do Chaguinhas, fundado no testemunho do padre Diogo Antonio Feijó; é, porém, elle testado, como falso, pelo dr. Piza; o contestemunho de Feijó quanto ao facto narrado, que é o proprio caso do Chaguinhas, a menos que

Martim Francisco estivesse compromettido em outra execução identica e da mesma epocha, é revestido de todos os requisitos que póde exigir o historiador mais escrupuloso :

1.o, a austeridade do seu caracter e inconcussa respeitabilidade;

2., a posição que na occasião occupava;

3.o, a assembléa perante a qual fez a accusação;

4.o, ter sido feita perante o proprio accusado;

5.o, não ter este negado ou se defendido de modo a destruir a imputação;

6.o, finalmente, concordar com os factos conhecidos, actos officiaes e tradição.

Os factos de que trata o dr. Piza nos seus artigos não são dos tempos coloniaes, passaram-se quasi em nossos dias, são de 1821 e 1822; não fazemos a critica dos seus artigos, apenas escrevemos um estudo historico.

Relativamente ao primeiro artigo-O supplicio de Chaguihas-de 47 paginas, só nas seis ultimas é que delle trata, expondo a tradição commum, referida por Feijó, e que é conhecida; este ponto, porém, foi mais desenvolvido no segundo-Martim Francisco e a Bernarda de Francisco Ignacio, e nelle se lê: «Chaguinhas não estava, de facto, tão envolvido e compromettido, como parecia, na sedição militar de Santos.

<<Entretanto os Andradas reconheciam a injustiça da sentença que condemnou Chaguinhas á morte e entenderam que era preciso salval-o a todo o custo, sem comtudo provocar conflictos com es portuguezes e retrogados de dentro e de fóra do governo, e para isso era necessario adiar indefinidamente a execução do réo, e dirigir os acontecimentos de fórma que se pudesse chegar ao resultado desejado sem choques, nem attritos compromettedores.

«O primeiro passo foi dividir os condemnados em dois grupos, dos quaes um ficou em Santos e lá foi sem demora enforcado, sob o pretexto de servir de exemplo para os filhos da costa do mar, porém de facto como satisfacção ao elemento retrogado, e o outro subiu a S. Paulo, sob pretexto de ser aqui executado para exemplo dos povos de serra acima, mas de facto para esperar os acontecimentos...

<< Estava dado o segundo passo, que era eliminar aquelle impertinente representante do poder colonial (o ouvidor D. Nuno Eugenio de Lossio Scilbz) e fazendo-o substituir por Costa Carvalho, permittir que a execução de Chaguinhas fosse presidida por Nicoláo de Siqueira Queiroz, que não era suspeito aos brasileiros, conquanto não estivesse no segredo das combinações.....

«E a execução de Chaguinhas continuava adiada para melhores tempos.

«Passaram-se os mezes de Janeiro, Fevereiro, Março e Abril de 1822. . . . . a situação foi-se aclarando e chegou a opportu nidade de executar a sentença que condemnou Chaguinhas á morte, e de salval-o dessa immerecida pena.

(Observa o dr. Piza: aqui é a tradição quem fala. Não ha documentos comprobatorios dos factos, mas tambem não ha provas em contrario á tradição).

«Era no mez de Maio, entre os dias 12 e 18, naquella estação do anno em que os dias já são relativamente curtos e as manhãs escuras de cerração, no valle dos rios Tamanduatehy e Tieté, que banham a cidade de S. Paulo. Chaguinhas foi levado da cadeia, situada no largo municipal, para o campo da Forca, que lhe ficava perto. Era entre 11 horas da manhã e 1 da tarde, e muita gente tinha affluido ao campo para ver o triste espectaculo. Depois do ceremonial já descripto, foi o réo atirado ao espaço, tendo no pescoço-fraca--córda amarrada ao gancho do patibulo. Rebentou-se naturalmente a corda-amiga-e o padecente, cahido ao chão, foi coberto com a bandeira da misericordia; eram 2 horas da tarde. O povo desceu ao palacio do governo para reclamar a commutação da pena, segundo o costume do tempo. Martim Francisco, directamente interessado no facto, se achava em palacio, á espera de noticia. Quando esta chegou, foram convocados os outros membros do governo, residentes em varios pontos da cidade, e até que se reunissem todos ou a maioria, discutissem o caso e tomassem uma resolução, foram-se mais algumas horas. Negada a commutação, em grande parte pela influencia e pelo voto de Martim Francisco, voltou o povo descontente para o campo da forca; eram 4 horas da tarde, e talvez cinco.

«Procedeu-se a nova execução com corda nova―não examinada por pessoas entendidas-esta, como a primeira, quebrou-se muito a tempo para deitar no chão o paciente cheio de vida. Veiu de novo cobril-o a bandeira de misericordia; emquanto o povo, não somente commovido, mas indignado, horrorisado, descia outra vez ao palacio para parlamentear com o governo, que foi de novo convocado para considerar o extranho caso.

«O povo exigia, o governo não cedeu, aquelle insistiu е este conservou-se inabalavel, e Martim, que não tinha deixado o palacio, chegou mesmo a sahir a uma janella e dirigir-se ao povo com expressões um pouco asperas, sustentando a resolução do governo de não alterar a pena, que ficou mantida. Foram mais 2 ou 3 horas, e quando resolvida negativamente a petição popular, voltou o povo ao logar do supplicio, era já noite avança

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da. Martim Francisco, entretanto, tinha tido tempo, por meio de agentes secretos, dous dos quaes eram o carrasco e o carcereiro, de substituir, na escuridão da noite, o paciente Chaguinhas por uma figura humana, bem preparada para o caso-a qual foi pendurada no laço de couro que, ainda para ganhar tempo, se mandou buscar no matadouro publico, em quanto Chaguinhas era cantelosamente escondido na occasião, e mais tarde era enviado em segredo para Porto Feliz, a embarcar-se em uma das monções fluviaes que, nos mezes de Junho, Julho e Agosto, costumavam dalli sahir para Cuyabá, e naquella distante paragem ficou elle, sem nunca mais voltar a S- Paulo.....

E Martim, que tão injustamente soffreu por um acto que não praticou, soube guardar tão profundo silencio a respeito, que não consta que seus proprios filhos tivessem conhecimento da realidade dos factos.

Mas elle teve amigos e cumplices que o auxiliaram na pratica desta caridosa fraude, e, se alguns guardaram tambem absoluto silencio, outros transmittiram o segredo, sob reserva, aos seus herdeiros, de modo que hoje a historia appareccu sob a forma de lenda e para muitos não merece credito.....

«A tradição da fuga de Chaguinhas está hoje muito generalisada, entre os velhos e muitos moços de S. Paulo e Santos, e tem-me sido narrada por varias vezes e por diversas pessoas, com pequenas variantes em detalhes de pouco importancia.»

Terá a menor verosimilhança esta lenda tão minuciosamente descripta, marcando-se até as horas do dia em que, pelas tres vezes, foi suppliciado Chaguinhas?

Note-se que geralmente taes execuções são feitas nas primeiras horas do dia, e era natural que o governo estivesse reunido durante a execução, ou que ao menos da primeira vez que foi convocado não mais se dissolvesse ou se retirasse para as suas casas até a consumação do supplicio

Por esta lenda, verdadeiramente comica, o papel que se dá a Martim Francisco é por certo muito original; para proteger a Chaguinhas, adia por mezes a execução da sentença, substitue a auctoridade que devia presidil-a, e no momento opportuno, nos curtos dias do mez de Maio de 1822, manda cumpril-a; levado Chaguinhas á forca, rebenta-se a corda, propositalmente escolhida, o povo implora clemencia, insiste Martim na execução; segunda vez rompe-se a corda traiçoeira; de novo vai o povo indignado e horrorisado supplicar misericordia para o infeliz; Martim dirige-lhe palavras asperas, sustentando a resolução do supplicio;

carrasco e o

como é noite, então Martim, de combinação com o carcereiro, faz substituir Chaguinhas por um boneco, e este é o que pela terceira vez conduzem á forca e é enterrado, emquanto o verdadeiro Chagas, por protecção do mesmo Martim, é levado em uma monção, para Cuyabá, um, dous ou tres mezes depois, nunca mais voltando a S. Paulo !

Não desejamos escrever as interrogações que a todos occorrerão, relativamente a farça tão redicula; bem pouco perspicaz foi o inventor de semelhante lenda.

Martim Francisco era inimigo de Francisco Chagas; moço solteiro e estimado, as razões particulares dessa inimizade não interessam á historia; era a ella que se referia Feijó nas palavras attribuidas a Martim:-o sangue do inimigo é mui saboroso para beber-se de um só trago.»

A lenda que com tanto esmero nos foi descripta faz de Martim o protector de Chagas, não pela generosa bandeira da Misericordia, on pelas instantes supplicas do povo em massa, mas por um accordo burlesco com o carrasco, carcereiro e de certo com o coveiro e o fazedor de bonecos com a figura humana, e á sombra de noite tão escura que a todos illudiu: ao juiz que presidia a execução, ao confessor, aos amigos e numerosos assistentes que tanto interesse tinham tomado pelo sentenciado; a todos iiludiu, antes e depois da execução!

Quaesquer censuras que se fizessem, ou faça a historia, a Martim Francisco (e qual o homem politico que não as soffra merecidamente por alguns de seus actos?) o seu caracter sisudo e austero repelle o papel que lhe foi distribuido nesta lenda ; pela benemerencia dos serviços prestados á nossa patria, e que são por todos reconhecidos, devemos consideral-o muito acima de taes contos ou novellas.

A Cruz do Enforcado, erecta por contemporaneos do facto, e que ha tantas dezenas de annos recebe a romaria da população de S. Paulo, sobre tudo das classes menos abastadas, á qual pertencia Chaguinhas, protege e guarda os restos mortaes do suppliciado ou os trapos de um boneco?

Se os Andradas, como diz o dr. Piza, reconheciam a injustiça da sentença que condemnou Chaguinhas á morte, e entenderam que era preciso salval-o a todo o custo, muito boa occasião perderam quando a commissão militar, da qual fôra presidente Martim Francisco, examinou o conselho de guerra que o tinha condemnado; ou ainda, se em vez de mandarem que se executasse immediatamente a sentença, tivessem cumprido a lei que «determinava fossem remettidos, para serem decididos no Conselho Supremo Militar, ainda sem appellação da parte, todos

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