1800. OU INFORMAÇÃO DADA AO GOVERNO SOBRE A CAPITANIA DE MATO-GROSSO, POR RICARDO FRANCO DE ALMEIDA SERRA, TENENTE-CORONEL ENGENHEIRO, EM 31 DE JANEIRO DE MEMORIA, (Copiada de um manuscripto offerecido ao Instituto pelo Socio Correspondente Doutor José Antonio Pimenta Bueno, que o fez trasladar do manuscripto original, que existe na Secretaria do Governo de Cuiabá). Illmo e Ex.mo Sr. Manda-me V. Ex.a, pela sua ordem de 19 de Setembro do passado anno, dar o meu parecer e informação sobre a defensa da Capitania do Mato-Grosso, o mais accomodado á localidade do paiz, tendo por principio o segurar perfeitamente as communicações entre as suas principaes partes, quaes são o Cuiabá, Mato-Grosso, e outros logares internos, e extremos. Um plano de guerra para a Capitania de Mato-Grosso, ou seja defensiva, ou offensiva, demanda essenciaes conhecimentos, quaes são o Geographico do terreno limitrophe, a população do paiz inimigo, as suas forças e recursos, os logares mais expostos, os que offerecem livres entradas, e mais proximas correlações entre os confinantes estabelecimentos; a segurança destes, e a posse de outros, que por interessantes possam compensar a despesa de uma guerra, que sempre deve ter por objecto algum fim util, não só para o estado actual desta Capitania, mas para a sua futura segurança e augmento; a qual confinando com os dominios Hespanhóes, dez vezes mais povoados do que ella, cobre o interior do vastissimo Brasil, guardando nos seos vastos sertões sabidos e grandes thesouros; e contendo na sua superficie de quarenta e oito mil legoas quadradas, os nascimentos, e a maior parte do corpo de grandes rios, que, com trezentas leguas de curso, vão confluir no maximo rio das Amazonas; e o total de outros muitos rios, que dão livre entrada para o centro das Capitanias de S. Paulo, e de Goyaz. E valendo-me das noções adquiridas pelo largo espaço de 19 annos de residencia nesta Capital, empregando muitos delles no reconhecimento, e configuração dos rios da Madeira, Guaporé, Alegre, Barbados, Jaurú, Paraguay, e Cuiabá, assim como na dos terrenos confinantes com as possessões Hespanhólas; fazendo de tudo os respectivos e diversos Mappas Geographicos, Diarios, e Partes, como Commandante que fui de todas estas diligencias: eu passo, Ill. e Ex." Sr., segundo os meus limitados talentos, a encher da possivel forma os essenciaes, e expostos objectos. mo NOÇÃO GEOGRAPHICA RIO DA MADEIRA. Navegando-se desde a Cidade do Pará, 270 legoas pelo maximo rio das Amazonas, se chega á fóz do Rio Madeira, que lhe entra pela margem do Sul, na latitude austral de 3o e 24', e na longitude de 318° e 52'. Pelo Madeira acima navegam os botes, que se destinam ao commercio de Mato-Grosso, de mil até duas mil arrobas de carga, mais de 245 legoas, a rumo geral de Sudoeste, até a confluencia que nelle faz pela oriental margem o rio Mamoré, igualmente grande e caudaloso. O rio, chamado da Madeira pelos Portuguezes, é navegado e conhecido pelos Hespanhócs, desta juncção para cima com o nome de Beny, por todo o resto da sua extensão, de 250 legoas, até as suas remotas fontes nas serras dos Andes, contiguas á Cidade de la Paz, por que passa uma das suas origens: o rio Beny, dia e meio de navegação acima desta súa confluencia com Mamoré, tem uma grande cachoeira de salto, a qual se não animão a descer os Indios e Hespanhóes da Missão de Reis, situada acima deste salto, e de 800 habitantes. Um dos ricos e auriferos braços do rio Beny, mais proximo á fronteira Portugueza, é o rio Tipuani, que The entra pela sua occidental margem, quatro dias acima da Missão de Reis. Este rio, que pela sua rapida cor rente sobem os Hespanhóes desde a dita Missão, em quarenta dias de trabalhosa navegação, pela fazerem em balças até ás minas, e povo de Tipuani, se desce em cinco. O ouro destas minas é grosso, de vinte e tres quilates, e colhido pelos Hespanhóes, não com o trivial trabalho das mais minas, mas sim escavando a terra e arêa movediça daquelle logar até a flor d'agua, que verte tanto que difficulta maior trabalho; é ouro que mais propriamente se acha na superficie do terreno, e se suppõe corrido das altas serras que tem em frente. Do povo de Tipuani, de 800 almas, são seis dias de difficil caminho, atravessando aspera serrania, até a Cidade da Paz. RIO MAMORE'. Deixando o Madeira, se entra e navega pelo Mamoré, quarenta e quatro legoas a rumo de Sul, até a confluencia que nelle faz por Oriente o rio Guaporé, na latitude austral de 11o e 55', e na longitude de 312o e 28' e meio. O rio Mamoré é de grande largura, fundo e abundantes aguas; elle, desde as suas fontes nas serras de Cochabamba, corre directamente de Sul a Norte, recebendo por ambos os lados muitos e não pequenos rios; sendo destes o maior e mais consideravel o Rio-Grande, ou Guapey, que, nascendo pela latitude de 20 gráos nas serras de Potosi, corre com tortuoso curso, e por 150 legoas, até desaguar na margem oriental do Mamoré; existindo nas margens deste, da dita fóz para baixo, a maior parte das Missões que formam a Provincia Hespanhóla de Moxos, isto é, trinta legoas acima da fóz do Guaporé está a Missão da Exaltação, sobre o lado do Occidente do Mamoré, habitada por mil almas. Quatro legoas superior a esta Missão, entra na mesma margem do Mamoré o rio Jacumá, e outras quatro legoas de navegação por elle acima está a Missão de Sancta Anna, povoada por 800 Indios: assim como a de Sancto Borja, de 700 habitantes, sobre um braço do mesmo Jacumá, rio que os Hespanhóes navegam dez dias para chegarem á Missão de Reis sobre o Beny, caminho que fazem tambem por terra em cinco dias de marcha. Vinte legoas superior á fóz do Jacumá, e na oriental margem do Mamoré existe a Missão de S. Pedro, que habitam tres mil Indios; e no rio Tiamuohy, que desagua na opposta margem, está a de Sancto Ignacio, de 1500 habitantes. S. Pedro é a capital e residencia do Governo de Moxos, havendo nella alguma artilheria, que os Hespanhóes alli fundiram e deixaram, nas duas diversas vezes em que pretenderam atacar o fórte hoje do Principe. Em fim, o povo da Trindade, que consta de tres mil habitantes, fica 12 legoas superior a S. Pedro, assim como pouco maior espaço mais adiante a de Loreto, habitada por mil almas: sendo esta a ultima e mais superior das Missões do Mamoré, as quaes fazem a maior, e mais povoada parte da Provincia de Moxos. Os Hespanhóes da cidade de Sancta Cruz de la Sierra embarcam no Rio Grande, de que dista dez legoas, e que pelo seu pouco fundo só admitte canôas, ou ubás de 60 até 80 cargas; e o navegam para se communicarem, e fazerem commercio com estas Missões do Mamoré, e com todas as mais que formam a dita Provincia. RIO GUAPORE'. Da confluencia do Mamoré com o Guaporé, se navegam por este ultimo rio 21 legoas a Sudoeste até o forte do Principe da Beira, situado na sua margem oriental, na latitude de Sul de 12° e 26', e na longitude de 312° 57' e 36". Quatro milhas a Leste do forte do Principe desagua na opposta margem do Guaporé o rio Itonamas, que trinta legoas de navegação acima desta fóz, na latitude 13o e 21', tem a Missão da Magdalena, a que uns dão sete, outros nove mil habitantes. Pouco mais de tres legoas acima da boca do Itonamas, entra na mesma margem do Guaporé o rio Baures, que traz as suas origens da Provincia de Chiquitos, correndo parallelo com o Guaporé, por 130 legoas de extensão. Quarenta legoas acima da sua fóz existem, sobre dous seus diversos braços, as duas Missões da Conceição, e de S. Joaquim, habitadas por quatro mil e quinhentos Indios. O total da população destas Missões, e Provincia de Moxos, consta de vinte e quatro mil Indios de ambos os sexos, e alguns poucos Hespanhóes, que lhes servem de directores, e outros mistéres. Esta Provincia, ainda que assaz doentia, é fertilissima, e tem grandes criações de gado vacum e cavallar: os Indios, que as povoam são de diversas nações, passando alguma dellas por valorosas. São esculptores, fundidores, torneiros, musicos, e outros officios: tecem varios e bellissimos pannos de algodão, fabricam muita agua-ardente, e clarissimo assucar: fazem bom chocolate, indo buscar o cacáu para elle nas cachoeiras, e margens do rio Madeira. Todos estes effeitos se remettem annualmente a Sancta Cruz, aonde por uma privativa administração, chamada Receitoria, são vendidos, e do producto se pagam as despesas da Provincia, e manda para cada Missão uma taxada, e proporcionada quantidade de ferramentas, sal, e outros effeitos. Com tudo, grande parte destes Indios usam de tipoyas (especie de grande camisa sem mangas) · feitas da entre-casca de grossos troncos de certas arvores, de enlaçada e estopenta fibra; pannos, a que à Europa chama de Taiti, pelos que o Capitão Cook trouxe de similhante fabrica das Ilhas que descobrio no mar Pacifico, se é que ha mais de duzentos annos as não visitou o grande e mallogrado Magalhães. Os Hespanhóes de Sancta Cruz de la Sierra se communicam com Moxos unicamente em canôas, navegando o Rio Grande, e o Mamoré, e tem tentado abrir caminho por terra; mas grandes pantanos, matos, e ainda alguns Indios silvestres, lhes difficultão esta estrada. As Missões de Moxos se communicam por agua umas com outras, descendo os rios Mamoré, Itonamas, e Baures, até ás suas bocas no Guaporé, navegando por este o espaço intermedio entre ellas: similhantemente navegam, pelo Mamoré até a sua confluencia com o Madeira; navegação, de que tem antiga posse, e comprehende setenta legoas de extensão desde as ditas bocas do Baures, e Madeira, a qual os Portuguezes, senhores da opposta margem, nunca contestaram, existindo o forte do Principe em um terço desta distancia. |