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Quem era o bacharel degradado em Cananéa ? (1)

Da exposição que o Instituto acaba de ouvir, e que muita luz vem lançar sobre a tão controvertida individualidade do famoso bacharel de Cananéa, desta interessante investigação, devida ao nosso digno consocio o sr. Ernesto Guilherme Young, se infere, mui provavelmente, que o bacharel de que se trata não é sinão Cosme Fernandes Pessoa, por tratamento mais usual conhecido por mestre Cosme.

O illustre auctor da Historia Geral do Brazil, Adolpho Varnhagen, julga, porém, não ser este o mesmo individuo de que falam as primeiras relações de viagem, mas um outro bacharel, apparecido em S. Vicente depois da vinda de Martim Affonso de Souza. Esta opinião do abalisado historiador, constante de uma nota da primeira edição de sua obra, não foi, porém, reproduzida na edição seguinte, o que faz crer que Varnhagen ou a abandonou por improvavel ou nutriu duvidas sobre a authenticidade do documento que lhe deu origem. O que é facto é que não mais se referiu a este assumpto, continuando, ao contrario, a opinar por Gonçalo da Costa, como sendo o bacharel portuguez degradado em Cananéa em 1501 e alli deixado pela primeira armada exploradora da costa.

Candido Mendes de Almeida, em eruditissimo estudo sob o titulo-Notas para a Historia Patria (2)—, deixa de discutir a individualidade de Mestre Cosme, visto que a sua apparição, no Brazil ou em S. Vicente, é posterior ao estabelecimento de Martim Affonso, afastando assim esta questão, aliás digna de

(1) Apresentando ao Instituto Historico de S. Paulo os Subsidios para a historia de Iguape e seus fundadores, do sr. Ernesto Guilherme Young, em 1902.

(2) Candido Mendes de Almeida. Notas para a Historia Patria, segundo artigoOs primeiros povoadores. Quem era o bacharel de Cananéa? Memoria lida perante o Instituto Historico e Geographico na sessão de 7 de Julho de 1876). Rev. Inst. Hist., tomo 40, p. 163.

maior investigação, para quebrar lanças por João Ramalho, que elle procurou demonstrar ser o tão afamado bacharel.

Vê-se bem que tanto Varnhagen como Candido Mendes não enfrentaram a questão do mestre Cosme, além de outras razões já citadas, talvez por insufficiencia de provas documentaes. A carta de confirmação, passada por Antonio de Oliveira, concedendo terras a Pero Corrêa a 25 de Maio de 1542 era, com effeito, o unico documento a dar razão em favor da hypothese que as recentes investigações do sr. Ioung foram a pôr em foco.

Por esse documento se verifica que Pero Corrêa, havendo por devolutas as terias proximas do Porto das Náos, da outra banda da ilha de S. Vicente, as obteve para si no tempo em que era loco-tenente do donatario Gonçalo Monteiro; mas, tende em viagem perdido os respectivos titulos, solicitou e obteve de Antonio de Oliveira, então preposto de Martim Affonso de Souza, a sobredita carta de confirmação na qual se lê a seguinte referencia: «Faço saber aos que esta minha carta de confirmação virem, como por Pero Corrêa, morador desta villa de S. Vicente, me foi feita uma petição em que diz que, por Gonçalo Monteiro, que aqui foi capitão, lhe foram dadas umas terras da outra banda desta ilha, que é o porto das náos, terra que era dada a mestre Cosme, bacharel, e outra de onde chamam Perohybe, e é dez ou doze leguas desta villa...» No mesmo documento, algumas linhas adeante, se repete, por estas palavras, a referencia ao mesmo bacharel: «as demarcações dellas, as quaes eu escrivào dou fé e digo ser verdade, que no dito livro do tombo são duas cartas registradas da terra que Gonçalo Monteiro, sendo capitão, deu ao dito Pero Corrêa, e partem em esta maneira: a 1., que foi dada, que é defronte desta ilha e villa de S. Vicente, que era antes dada pelo governador a um mestre Cosme, bacharel, que o dito Pedro Corrêa houve por devolutas; começa a partir do porto das náos, partindo com terras de Antonio Rodrigues até ir partir com terras de Fernão de Moraes, defunto, ou com cujas forem daqui por deante, e a melhor declaração, assim como se achar que o dito bacharel, mestre Cosme partia, porque pelas proprias declarações que lhe era dada, a deu ao dito Pedro Corrêa, e onde começou a partir, que é no dito porto das náos, ficará um rocio de tiro de arco, assim como foi mandado e ordenado pelo senhor governador, que fique livre e desembargado para quando as náos alli ancorarem» (1).

(1) Man el Euphrasio de Azevedo Marques,-Apontamentos para a historia, etc. de S. Paulo parte 11, p. 98.

Do exposto se vê que o proprio Martim Affonso de Souza, antes de retirar-se para o reino em 1533, fez concessões das terras vizinhas do porto das nãos e fronteiras a Timiurú a mestre Cosme, bacharel, e a Antonio Rodrigues, ficando ambos os concessionarios vizinhos confrontantes, mas deixando livre e desembaraçado um trecho de terreno, equivalente a um tiro de arco em roda para nelle se vararem as náos, o qual ficou desde então pertencendo ao Conselho.

Frei Gaspar da Madre de Deus, nas suas Memorias (1), refere que, por uma petição de Jeronymo Leitão, para construir um trapiche no porto das náos, foram concedidas por sesmaria, a Antonio Rodrigues, as terras fronteiras a Timiurú, reservando-se um pedaço dellas para ali se crenarem as embarcações. Não cita o auctor das Memorias o nome de mestre Cosme, mas dahi não se deve inferir que a este se não concedessem tambem terras no mesmo logar.

Uma explicação mui razoavel ha para isso. O bacharel degradado vivia, ha muitos annos, estabelecido com uma especie de feitoria nas terras proximas ao que depois se chamou o porto das mãos e vizinho do velho Antonio Rodrigues. Com a vinda de Martim Affonso para S. Vicente e a nova ordem de coisas, os dois aventureiros, que já ahi se achavam, solicitaram logo do donatario as terras de que já estavam de posse, havia longos annos e as obtiveram.

Mas o novo regimen, já não convindo, por quaesquer motivos, ao bacharel, habituado como estava a um viver liberrimo e sem pêas, fez com que este, deixando o seu primeiro estabelecimento em S. Vicente, fösse viver em sitio mais apartado e quiça para algum outro estabelecimento que porventura já havia iniciado para os lados de Iguape. Ahi ficaria mais longe do imperio da lei e, decerto. continuaria a reinar entre os seus indios e a fazer o seu trafico como dantes.

Ficaram assim em abandono as terras que lhe pertenciam, junto do porto das náos, e então é que Pero Corrêa as houve por devolutas, solicitando-as de Gonçalo Monteiro, capitão e loco-tenente do donatario.

Tudo leva a crêr que o bacharel de S. Vicente é o mesmo de Cananéa ou de Iguape, o mesmo individuo cujo nome nenhum viajante nos transmittiu e que só agora se descobre debaixo da poeira de velhos documentos.

Essa carta de confirmação de Pero Corrêa, comquanto datada de 1542, onze annos depois da fundação de S. Vicente,

(1) Memorias para a Historia da Capitania de 8. Vicente, § 58, p. 27.

tem indubitavelmente o merito da revelação, transmittindo-nos o nome do famoso bacharel, o qual, nas condições em que esse documento o apresenta, não é nenhum outro bacharel apparecido depois em S. Vicente, como opinaram Varnhagen e Candido Mendes, mas o mesmo individuo, degradado em 1501, cuja notoridade, pelo facto de ser elle um lettrado ou legista, foi tão grande, no seu meio social, que o titulo veiu a sobrelevar ao proprio nome, obscurecendo-o ou deixando-o no olvido.

O que é bem provavel é que o referido bacharel degradado podia ainda estar vivo em 1542, contando a edade presumida de setenta e cinco annos, não sendo preciso recorrer á hypothese de um outro individuo para explicar o documento ou carta de confirmação a que temos alludido. As epochas são mui preximas, e além disso, a identidade dos logares induz à identidade de pessoa.

Investigações posteriores, como estas do sr. Young, de que acabaes de tomar conhecimento, confirmam a existencia de mestre Cosme em Iguape, onde a tradição e os documentos locaes são accordes em consideral-o o primeiro e mais antigo possuidor de terra alli, citando-se-lhe o nome ora como Cosme Fernandes, ora como Cosme Fernandes Pessoa, que morreu deixando descendentes, aos quaes se deve a doação de terras para o rocio da villa.

A carta de confirmação de Pero Corrêa, de 1542, a que nos temos referido, já não é documento unico, depois das investigações a que se entregou o nosso consorcio E. G. Young. A individualidade de mestre Cosme, bacharel, que aquelle documento agitou, parece-me que fica sufficientemente comprovada com OS documentos e as tradições correntes em Iguape.

E' de esperar que, das aturadas pesquizas do nosso laborioso E. G. Young, outros documentos appareçam demonstrando á evidencia e corroborando as conclusões a que chegámos, isto é, que o mestre Cosme, bacharel, do documento de 1542, é o mesmo Cosme Fernandes Pessoa, o mais antigo possuidor de terras em Iguape, o fundador dessa cidade, «o homem de grandes merecimentos que deixou em seu testamento declaração de que suas terras ficavam oneradas com a pensão annual de uma missa para todo o sempre pelo descanço da sua alma, sendo como era de um grande criminoso... »

Tudo nos leva a crer que o mestre Cosme, bacharel, do documento de 1542, é o mesmo Cosme Fernandes Pessoa de Iguape, o mesmo bacharel deixado em degredo em Cananéa em 1501.

Não terminaremos sem fazer algumas considerações aqui, agora muito a proposito, sobre individualidade de João Ramalho, que segundo opinam alguns historiadores, era o bacharel degredado em Cananéa desde a primeira viagem de exploração da costa do Brazil.

Este aventureiro era, porém, illettrado.

Está averiguado que não sabia sequer assignar o seu proprio nome, que nas dezenove assignaturas suas, encontradas nas actas de vereança da villa de Santo André, por elle fundada, o que se vê e se reconhece feito pelo proprio punho de Ramalho é um signal curvo interposto ao nome e o appellido, signal em fórma de ferradura, de traço grosso, como que feito por uma mão pesada e ás vezes tremula, sendo o mais escripto por lettra do escrivão Diogo Fernandes, ou de Simão Jorge ou de Braz Cubas, vereadores que com elle serviram.

E nem se diga que por sua avançada edade recorresse elle a este expediente, porque, pelos annos em que taes vereanças se realizaram (1), o celebre alcaide-mór da Borda do Campo ainda era um homem forte, pelo menos ainda capaz de commandar em guerra, pois que em 1562 era eleito pelo povo para capitão da gente que foi fazer a guerra aos indios do rio Paranahyba. Mui provavelmente, estaria entre os 68 e os 75 annos o fundador de Santo André, quando assignou aquellas actas de vereança, e, nessa edade, o individuo que não é analphabeto bem póde assignar por seu proprio punho, não carecendo de recorrer ao expediente acima apontado.

João Ramalho era, pois, analphabeto; não podia, portanto, ser o bacharel degradado em 1501, conclusão a que tambem chegou o illustre historiador Varnhagem, como se vê da sua nota annexa ao fim do 1.° volume da sua Historia Geral do Brazil, donde tambem se vê de uma carta do padre Balthasar Fernandes, de 1568. que o celebre aventureiro, apezar de sua avançada edade, não queria nada de Deus, pois não é outro sinão João Ramalho o individuo a quem na citada carta se faz referencia.

O trecho dessa carta, escripta da capitania de S. Vicente a 22 de Abril de 1568, diz assim:

<< Hum homem branco, que ha 60 annos que está nesta terra entre este gentio, que agora hé quasi de cem annos (2) estando entre os indios e vivendo não sei de que maneira, e não querendo nada de nossas ajudas nem ministerio, deu-lhe Deus de rosto com hum accidente, alêm de muitos corrimentos e pontadas

(1)

Archivo da Camara de S. Paulo, Livro de vereanças, tit. 1562. (2) Teria provavelmente seus novent annos, ou muito perto disso.

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